Dois muros de sabão e mármore formando conchas acústicas, com alto-falantes incrustados, que reproduzem o texto “Soap Opera”, de Nuno Ramos. Interpretados por dois cantores líricos (um baixo e uma soprano), que mimetizam uivos e latidos, o texto utiliza trechos das óperas D. Giovanni e A Flauta Mágica, de Mozart, e fragmentos de poemas de Carlos Drummond de Andrade e Konstantinos Kaváfis.
Intérpretes: José Maria Cardoso e Madalena Bernardes.
Soprano
Baixo
Juntos
As sílabas alongadas sugerem que os atores imitem cachorros (latidos e ganidos).
(Som de uma batida de carros)
Baixo (heróico)
Rua. A rua estava (Soprano entra, os dois juntos) lá. Poste! (Baixo sozinho) Pedra. O carro vinha. Hora, hora depois de hora! (Soprano sozinha, passando da palavra hora para ganidos,lenta) Hó ó ó ó ó ó ra.
(Baixo sozinho) Hóóóóóóóóóóra. (Pausa) A coisa está chegando perto. Rondando. Me rondando. Motor de óleo diesel sujo. Grooooosso. (Late baixo, como um ronco) Peluuuuuudo. Assombrado pelo próprio passo. Animal de alma escura. (Late grosso) Ruuuuuuuuua. Ruuuuuuuuua. Estava ali, parado. Eu. Euuuuuuuuu.
(Soprano entra). Euuuuuuuuuuuu.
(Soprano sai, Baixo continua sozinho – tom heróico) Euuuuuuuuuuuuu. Poste. Perto do poste. Pedra. Perto da pedra. Placa, perto da placa. Morte, perto da mooooooooorte banal, trivial. Perto da laje branca da sarjeta suja, caído. A bocarra escancararararararada. A baba, áuáúáuáuáuáuáugua escarrada. Para fora. E a entranha, como se fosse (Soprano entra, juntos) miiiiiiiiiiiiinha. (Soprano sai) Perto da canela dos homens, na altura dos seus sapatos. Olhando. Perto do pára-lamas, perto do párachoque, rondando. Mordendo a cauauauauauda, em (começa a palavra “círculos”, soprano entra e termina a palavra sozinha) cíííííííííííííííííííírculos.
Soprano (exaltada):
Cííííííííírculos redondos. (Baixo entra só na palavra Bem) Bem (Baixo sai) redondos. (Som de um trovão - pedaço de melodia do solo da Rainha da Noite, de “A Flauta Mágica”, de Mozart). Cííííííííííírculos. As últimas notícias: comi. Me deram de comer. Estranhos, estranhos hóóóóóómens. Ó hóóóóóóómens, estranhos, estranhos homens. Nunca são, estão. Nunca estão, flutuam, sem peso. Tão delicados. Mais que um arbusto, um bueiro, uma (baixo entra só na palavra Fruta) fruuuta fajuta, caída na ruuuuuua. Correm e correm de um lado para outro, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes não sei que (Baixo entra junto) atribuuuuuuuuuto (Baixo sai) essencial, posto se apresentem nobres, até siniiiistros. Siniiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiistros. No rasto da ai!, tristeza, chegam à oh! crueldade. Sim, à aiaiaiaiaiaiaiai crueldade. Matam por causa de barulho. Latidos. Envenenam por causa de ganidos. Nooooooooossos ganidos. Furam os olhos com alfinetes. Noooooooooossos olhos. Incendeiam os vira-latas. (Trovão. Pedaço de melodia da Rainha da noite) Viiiiiira-latas! (Baixo entra) Viiiiiiiiira-latas! Insensatos! Idiotas! Serão julgados! (Pausa. Baixo sai) Neles, há pouca montanha. Ruas, há ruas em tudo o que. Planícies imensas, dias presos à planíííície. E olham para a diadema do diiiiiiiiiia, do diiiiia redondo, e ouvem a cantata desafinada e coletiva com que sonham. Eles soooooonham. Disparatados goles de (soprano sai, baixo entra) ar e de amoor, de amoooooooooroooor e de (soprano entra, baixo sai) cóóóóólera. (Pausa. Os dois juntos) Ou essa: (Soprano sai, baixo entra, simulando alguém afastando um cachorro) Paaaaaaassa. (Baixo sai, soprano entra) Passa daqui. Agora (Baixo entra, juntos) Foooooora, foooora já. (Baixo sai) Saia daqui. (Baixo entra) Sai, cão imundo. (Baixo sai, pausa) Serão julgados. Serão julgados. Serão julgados. (seguindo a melodia do último ato de “Dom Giovanni”, de Mozart)
Baixo
Arrepende-te! Para jantar me convidaste. (Pausa) Aqui estou.
Soprano
Farei o que puder para recebê-lo.
Baixo
Não toca em alimento mortal quem toca em alimento celeste. De outro assunto, muito mais grave, vim tratar. Soprano Fala, então. Que é que me pede? Baixo Escuta, escuta. Não tenho mais tempo.
Soprano
Escuto. Te (soprano entra) escuuuuuuuuuuto.
Baixo
Você me convidou para jantar. Aceitaria agora o meu convite? Viria cear comigo?
Soprano
Não tenho temor no peito. Nem arrependimento. Aceito o teu convite. Baixo Me dê a tua mão. Soprano Ei-la. Ohimè! É feito gelo!
Baixo
Arrepende-te! Tua vida se acaba. Arrepende-te!
Soprano
Não me arrependo de nada. Afasta-te de mim!
Baixo
Arrepende-te! Celerado!
Soprano
Não me arrependo de nada, velho chato!
Baixo
Arrepende-te!
Soprano
Não!
Baixo
Sim!
Soprano
Não!
Baixo
Sim!
Soprano
Não! (Pausa) Não! (Pausa) Não!
Baixo
Ah! Não há mais tempo!
Soprano
Que tremor insólito assalta o meu peito? De onde vem este fogo?
Baixo e soprano
Tua culpa é pouco perto do que te aguarda. Vem, vou te mostrar!
Baixo (melancólico) - (Soprano entra na primeira frase) Estamos todos mortos. Lançados a alturas improváveis, por carros velozes, contra o barranco avermelhado (é a segunda porrauauauauauda), depois do parachoooooooques, que chega primeiro (é a primeira porrauauauauauauda). Pobre cauauauauauauauada, (baixo sai, soprano entra) cauauauauauauda, (baixo entra) já não balança mais.
Soprano (melancólica) - (Baixo entra na primeira frase) Estamos todos mortos. Porém, aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii porém (cantando de modo empostado a melodia da canção de Paulinho da Viola) há um caso diferente que marcou num breve tempo meu coração para sempre. Era diiiia de carnaval. Baixo (melancólico) Era um dia normal, bem normauauauauau. Estávamos ali, começando a gostar daquela leseira. O inferno intestinal não nos machucava tanto e eu lambia minha cloauauauauca, e depois a cloauauauuaca dela. Cheirava uma sarjeta bem mijada, me lembro bem. Quando. (Baixo sai, soprano entra) Quê? (Soprano sai, baixo entra) Ouça bem.
(Baixo sai, soprano entra) Quê? O quê? (Pausa. Animando-se) Não pensava em novo amor, quando alguém que não me lembro anunciou. Socorro! Ai! Arrepende-te!
Baixo
Não!
Soprano
Sim!
Baixo
Não!
Soprano
Um conjunto de carros vermelhos, pintados, os motores envenenados, cercou a rua, apertando nossa pequena comunidade contra o muro.
Baixo (melancólico)
O muro cinza. A pequena comunidade apertada contra o muro ciiiiiiiiiiiiiiiiiiiza. (Pausa) Sem (Soprano entra) saíííída. Cul-de-sac. Rua que acaauauauba nela mesma. Era iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiisso.
Soprano
O muro era cinza. (Pausa) Era cinzento! Cinza escuro.
Baixo
Não me arrependo, não me arrependo de nada. (Pausa) As coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão! (Pausa) Tiraram os galões de gasolina do porta-malas.
Soprano
Usavam luvas.
Baixo (Soprano entra) Arrepende-te, (Soprano sai) não, não me arrependo de nada. (Pausa) Tiraram os galões de gasolina e. Sim. Contra o muuuuuuuuuro.
Soprano
(Som de trovão. A palavra muro será cantada com a melodia do solo da Rainha da Noite) Muuuuuuuuuuuuuuuuuuro.
Baixo
Fósforo, um pequeno fiapo de luz azul. Fósforo. Um pequeno dançarino, pshhhh, incandescente. E tanto mal causou.
Soprano
Serão julgados! (Pausa) Eu digo que serão julgados.
Baixo
Não havia para onde correr. Não me arrependo de nada. As labaredas. A cachorrauauauauauauda. (Soprano entra) A matiiiiiilha. (Soprano sai) A tocha animal se lançando contra. Os olhos faiscavam junto. As aaaalmas (Soprano entra) caniiiiiiiiiiinas (Soprano sai) se debatiam dentro das caixas (Soprano entra) felpuuuuuuuudas. Ó! Felpudas. SopranoIncendiados. Incendiados. (Pausa) Violentos. (Baixo entra) De longe os mais violentos. (Pausa) Serão julgados. (Baixo sai) Ficamos ali estendidos, semimortos, semiviiiivos.
Baixo (lendo pausadamente)
“Belos corpos de mortos que nunca envelheceram/ com lágrimas sepultos em mausoléus brilhantes / jasmim nos pés, cabeça circundada de rosas – (Soprano entra, baixo sai) / assim são os desejos que um dia feneceram / sem chegar a cumprirse, sem conhecerem antes / (Baixo entra) o prazer de uma noite luminosa.” (Pausa) O pelo da cachorrada calcinado. Não sobrou ninguém para cheirar. Os uivos da cachorrada bateram no muro e foram embora, entrando pelos bueiros e sumindo lá dentro. Ou misturando-se à copa das árvores secas. Uma comunidade inteira de cães dormindo queimados.
Soprano (lendo pausadamente)
“Lembra, corpo, não só o quanto foste amado / não só os leitos onde repousaste / mas também os desejos que brilharam / por ti em outros olhos, claramente / e que tornaram a voz trêmula – (Soprano sai, Baixo entra) e que algum / obstáculo casual fez malograr. / Agora que isso perdeu se no passado / é quase como se a tais desejos / te entregaras (Baixo sai, soprano entra) - e como brilhavam,/ lembra, nos olhos que te olhavam/ e como por ti na voz tremiam (Baixo entra) lembra, corpo.” (Pausa longa. Baixo sai) Lembra, corpo. Dejeto de um escauauauaurro! Contaminado de agrura, ai! Oh! (Som de filme pornô ao fundo). Um rio dominante me domina. Leito-asfalto. Piche quente. Toma, mordida. Serei vingada! Insensatos! Estamos presos pela (Baixo entra) cloauauauauaca-pinto, os dois bem misturados. (Baixo sai) Fui entubada pela mangueira desse vira-latas. Inchou lá dentro. (Corta o som de filme pornô) Não sinto nada. Cão inútil. Não sinto nada.
Baixo (cantofalado melancólico)
Prendeu, cadela imunda. (Entoando a canção de Candeias) Adio! Adio! (Pausa) Deixe-me iiiir, deixe-me andar, vou por aííí a procurar. A carne é triste depois da felação. A carne é triste depois do sessenta-enove. Me soooooooolta! Será julgauauauauda! Com certeza. Pelo Deus dos pintos livres, pela fundação internacional que defende a liberdade de ir e vir dos (Volta som de filme pornô) pintos meio moles depois de entrar e fazer o que bem quiseram lá dentro. Dentro disso aí. (Pausa. Entoando a canção de Candeias) Rir pra não chorar. (Pausa) Não tenho culpa! Não me arrependo de nauauauda! Não quero nauauauada! (Soprano entra) Me sooooooooooooooooolta!
Soprano
Mas senhor, o seu pauauauau ainda está duro!
Baixo
O quê? Como? Duro nada! Lasciiiiiva! Me solta! Será julgauauauda! Sem-vergonha! Ó! Me solta!
Soprano
Mas senhor, minha (a palavra cauda será cantada como uma gargalhada) cauauauauauaauda ainda balança. Eccola! Estamos em colóquio. Neste momento. Agorauaua. Um dentro do ouuuuuuuuuuuuuuutro. Até que a exaustão nos separe. (Para som de filme pornô. Pausa) Não sou eu. Nem é você. Não é a carne. É a idéia de gozar que está gozando. É a idéia de um cão que se fez pata, passo, madrugada. (Pausa) Ou chuva. Esta chuva. (Baixo entra) Ou os chutes. Estes chutes, que levam ao limite a resistência de nossas (Pausa) costeeeeeelas. Ou a gasoliiiina. (Baixo sai) Esta gasolina, tirada de galões de plástico, que nosso pêlo recebe, aceita, chuuuuuuupa, chuuupa, imuuuuuundo, chuuupa agora, encharcando-se. Ou o incêndio dos amantes. Ou o dueto dos meus peidos. Ou a risauauauaauda dos incendiáááááááááários. (Pausa) Serão julgados. Agora. (Baixo entra) Ah!, serão julgados. Não são eles. É a idéia de alguma coisa como eles. Serão julgados. Auauauaugora. (Soprano sai) Auauauauagora. (Baixo sai, soprano entra) Auauauuagora. (Baixo entra) Auauauaugora.