O canto suburbano de um moralista/1994
(a crônica esportiva de Nelson Rodrigues)
“Vamos exagerar, amigos, vamos exagerar.” De fato, tudo em A pátria em chuteiras,1 de Nelson Rodrigues, é superlativo. A necessidade constante de criar hipérboles estrutura o texto em seus aspectos essenciais. A frase, de fácil memorização, a criação constante de tipos, os motes recorrentes que atravessam o livro estão todos organizados em torno do superlativo, do tema obsessivo da grandeza brasileira que alguns idiotas teimariam em não ver.
É impressionante a coesão destas crônicas, escritas afinal num intervalo de 23 anos. Antes de tudo, descrevem a passagem do país vira-latas de 1950 ao grande vitorioso do tricampeonato. A identificação do escrete com a nação é a primeira e mais fundamental das generalizações que organizam o texto de Nelson Rodrigues, e permite que sua fantástica pegada humorística, capaz de fazer desabar qualquer adversário, gra-vite em torno de algumas asserções bastante simples. Afinal, tudo o que estas crônicas dizem, e repetem constantemente, é que, se não se deixar intimidar por uma injustificada humildade terceiro-mundista, ninguém segura o brasileiro (as crônicas sobre o futebol carioca parecem mais chochas). Para sustentar esta tese é preciso criticar os idiotas da objetividade em sua pretensa imparcialidade, louvar a construção de um país-potência (“a Pátria é tudo”), fazer da molecagem, versão Mané Garrincha do malandro carioca, a grande contribuição brasileira à cultura universal etc. Assim como os temas são recorrentes, também os tipos e até as próprias tiradas retornam constantemente: “ler gibi em campo”, “o grito das manchetes”, “a baba elástica e bovina”; Didi é o “Príncipe Etíope de Rancho”, Pelé é o “Divino”, Amarildo o “Possesso”. O livro de Nelson Rodrigues sobre futebol não nega o aspecto essencial de toda a sua obra: é o livro de um moralista, que procura reduzir a folhagem da vida a algumas raízes essenciais.
Acho difícil falar, nessas crônicas, de uma épica homérica, como quer Armando Nogueira (na “orelha” do livro). Sei bem que os heróis de Nelson têm epítetos, e que o tom geral é mistificador, mas sabemos também que a poesia épica é a poesia das coisas, da objetividade, da longa enumeração dos exércitos no segundo canto da Ilíada, ao passo que o narrador em Nelson Rodrigues parece sempre distante, ou mesmo ausente, da cena que descreve. Não há o tempero do específico, a descrição pormenorizada de uma jogada, ou mesmo de um jogador, mas apenas a matéria-prima para que, por meio de uma hipérbole, alcancemos um daqueles tipos ou temas fundamentais. A exceção, aqui, é Garrincha, santificado em sua molecagem, descrito de modo mais detalhado e concreto. Pelé, por exemplo, aparece como o maior dos maiores (e devemos isso a Nelson, que o chamou de “rei” antes de todos, quando tinha apenas dezessete anos), mas este tipo não se particulariza em nenhum momento. Aquiles sem calcanhar, a potência de Pelé se reproduz sem obstáculos pelo texto afora. A descrição do gol de placa em “Gols de antologia” dá exemplo de uma certa frustração que toma o leitor de Nelson Rodrigues: afinal, o que foi exatamente que ele fez? Exemplo extremo disto são as palavras dedicadas a Gil, aquele ponteiro medíocre de meados dos anos 70, mas que, tratado com o mesmo tom hiperbólico, parece confundir-se com o Jairzinho de 70 ou com o próprio Mané.
Deve-se reparar, aqui, num aspecto importante: além de sua proverbial miopia, é provável que Nelson escrevesse muitas vezes sobre partidas que ouviu no radinho de pilha (personagem brilhante, aliás, dessas crônicas). A burrice da televisão, a que alude Nelson Rodrigues, está em fixar pela imagem o que a narração radiofônica amplificava. Para Nelson, “as coisas só tomam seu exato valor quando evocadas”, embora evocação para ele suprima a premissa de perda e distância que parece quase sempre acompanhá-la (um caso exemplar desta premissa pode ser encontrado na canção “Coqueiro de Itapoã”, de Dorival Caymmi). Ao contrário do saudosismo que tantas vezes cerca a crônica esportiva, o presente aqui parece melhor do que o passado – na verdade, ele vingou o passado, a derrota de 50.
É difícil definir a força inegável do texto de Nelson Rodrigues, que seqüestra o leitor e faz com que sinta dificuldade em separar-se dele. Com certeza, não é apenas o resultado estilístico de um grande escritor. Se não está também na descrição do jogo, nem na compreensão do que está em jogo (estes tipos e situações-chave que parecem tantas vezes um reducionismo), virá talvez do grande excluído, do tipo negado, do idiota essencial a que se refere cada uma dessas crônicas. Há em Nelson Rodrigues uma espécie de ressentimento assumido, como se ele dissesse o que não se tinha coragem de dizer: este é um grande país, nossa misé-ria é desvio e não essência, o brasileiro é mais criativo, os gringos não têm cintura, a malandragem dos subúrbios é mais competitiva do que o saber enfatuado dos países ricos. Trata-se de uma intensa negação de qualquer cosmopolitismo, em colisão frontal com o projeto bossa-novista, contemporâneo dele, que faz do Rio, não um contraponto, mas um centro integrado ao circuito internacional e com o qual talvez a “grã-fina de narinas de cadáver” tivesse alguma identidade. Este país civilizado, do cantinho e do violão, do amor e da canção, é o grande excluído do texto do moralista Nelson. Talvez seja impossível, hoje, diante da ruína do projeto desenvolvimentista dos anos 50, deixar de sentir a força deste canto suburbano, desta voz das sarjetas. Afinal, por mais ufanista que tenha se tornado, quem foi vira-latas até 58 nunca esquece a sua origem.
1. A pátria em chuteiras, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.