A construção no vento (Mira Schendel)/1996
Mira Schendel, Droguinha, 1966.
Lembro de um gesto súbito seu, com a mão direita, como se apanhasse uma mosca no ar. Às vezes, ela dizia “esperra”, fazia o gesto e descrevia alguma “bolaçón”. “Bolaçón” era uma espécie de projeto, inacabado o bastante para que só se cumprisse plasticamente, mas capaz, por outro lado, de afastar a tentação de virtuose. Essa agilidade de quem apanha no ar, onde menos esperávamos, alguma coisa visível só para ela, revelada pelo gesto de sua mão direita, aquela que desenhava (a gente brincava que ia pedir o tombamento de sua mão pelo Patrimônio Histórico), diz muito sobre o seu trabalho. Ele é a captação de algo fugaz, sutil, mais próximo do gás que da matéria sólida (ainda que se materializasse de modo tão acentuado), diversificado ao extremo mas poderosamente articulado, algo que já estava lá nos esperando dentro do papel, dentro de outro suporte qualquer, dentro de sua mão.
Com o trabalho de Mira, o papel ganha uma aura inconfundível, já que ela não parece trabalhar sobre ele, mas dentro ou através dele.1 Torna-se um campo meio imaculado, cheio de possibilidades que não devemos, por precipitação, estragar. O que foi realizado cede a este campo o seu acento, como se reconhecesse o pouco que pôde cumprir e se recolhesse à consciência de sua fugacidade. Há um fundo de pureza aqui, extremamente poderoso, já que não remete à melancolia de uma origem perdida, mas está sempre a exigir um ato preciso que o atualize. É sobre este fundo que deixamos nossas marcas, nossos pobres sinais. Não é por acaso que Mira trabalhava sempre com o papel poroso, de modo que a tinta se entranhasse e parecesse vir de dentro dele; não é à toa que as “Droguinhas” tivessem uma infinitude virtual, ininterrupta, que dissolvia a unidade do gesto que amarrava o papel, assim como o campo dissolvia a unidade da linha; não é à toa que os “Sarrafos” pulassem para fora e retornassem ao campo, em algum lugar estranho entre a terceira e a segunda dimensões. Apesar de lidar sempre com elementos discretos, nada é mais alheio a este trabalho do que a composição de partes. É que a individuação (aquilo que foi feito – a linha, o gesto, a tinta, a letraset aplicada, o elemento de madeira pregado) está sendo problematizada o tempo todo, como se não tivesse direito assegurado, ou melhor: como se devesse acomodar-se ao campo (ao suporte em que se apóia) para justificar-se – despertando, nesse movimento, o contorno e a presença deste campo.
Em geral, no trabalho de Mira, a linha é este elemento mágico, encarregado de sofrer a experiência do campo, de pisar em território sagrado sem gritar muito alto o próprio nome, mas sem esquecê-lo também. A experiência da alteridade (da linha que age sobre o papel, por exemplo) deve ceder diante daquilo que alterou, apagando-se, desfazendo-se; não pode aparecer como uma conquista irreversível do indivíduo. Não pode também, por outro lado, dissolver-se completa-mente num todo abstrato. A equação construtiva ganha assim um acento ético insuspeitado, onde talvez seja possível perceber um quietismo de fundo. A obra de arte não aciona uma operação modelar, uma unidade a ser repetida no corpo da sociedade (como para grande parte do movi-mento moderno), mas sim a pergunta sofrida de um indivíduo pelo sentido e validade da própria existência. Pergunta que é preciso repetir para fazer durar, já que só pode ser respondida em ato, pela fricção constante com a resistência das coisas. As ramificações de seu trabalho em séries diversas, como variações dentro de um esquadro, devem-se a este impulso.
Se olharmos de perto um desenho de Mira, em especial as inúmeras monotipias de meados dos anos 1960, veremos como a linha é tateante, reflexiva. Trata-se de uma linha-pergunta, consciente da própria duração. Lenta ou veloz, toma o tempo apenas suficiente. A idéia de suficiência, de gasto exato de energia, me parece muito significativa no trabalho de Mira. É esta idéia que organiza sua flutuação, sua indecisão focada. O frágil equilíbrio do que já está lá exige uma atuação discreta (mesmo em instalações de grande porte, como “Ondas paradas de probabilidade”, obra com milhares de fios de náilon transparentes, exposta na x Bienal Internacional de São Paulo, em 1969),2 que possa ser absorvida sem transbordamento. O caráter lúdico de alguns trabalhos de Mira, em especial aqueles que lidam com grafismos impressos – realizados a par-tir do final dos anos 1960 e início dos 1970 –, se organiza a partir deste fundamento: o signo, a letraset ou estêncil, a esfera manuscrita, a vírgula, os dois-pontos, a tipologia de máquina-de-escrever, todos participam com igual direito deste jogo onde devem, fundamentalmente, conviver dentro de um campo circunscrito. Basta encontrar, uns em relação aos outros, a posição mais justa, mas sem perder, em sua dança, a consciência da própria posição e da dos companheiros no campo onde se movem.
A vírgula fica grande, a linha bem fininha, o A quase some no canto da página: os elementos parecem ter encontrado a “chave do tamanho”,3 alterando sua posição e proporção, trocando de acento constantemente, passando a vez uns aos outros. Daí a sua surpresa e, não é exagerado dizer, o seu humor. Se parecem mais pacificados, produzindo uma ten-são menor do que aquelas monotipias mais simples do início dos anos 1960 (já que a relação entre os elementos, quando muito acentuada, às vezes oblitera o cordão umbilical com o campo), chamam a atenção, no entanto, para uma questão central em Mira, complementar à que venho tratando até aqui: a questão do divertimento.
De fato, o divertimento está o tempo todo no horizonte do trabalho. É ele, creio, que alivia certo pesadume metafísico, de fundo quase quietista, que procurei descrever logo atrás.4 Se a individuação (do traço no papel, do gesto de amarrar na teia expansiva da “Droguinha”, do “Sarrafo” no retângulo branco de onde parte) é sempre problematizada, ela acaba dispensada de sua dor e de sua culpa pela própria variação com que se apresenta. Afinal, ela não é, propriamente; apenas tenta ser. Por isso Mira desenvolvia cada “bolaçón” através de um número bastante grande de obras singulares. É como se a questão central do trabalho (será que posso interferir em determinado campo ou sobre determinado material?) fosse sendo assim aliviada pelas bordas, pela própria capacidade de permanecer dentro dela, de suportar a sua duração. A reiteração da pergunta, única forma de respondê-la, vai trazendo o tempo para dentro da obra. Ela diverte no sentido em que faz o tempo passar, em que responde à necessidade de fazê-lo passar. Cada momento do trabalho adquire assim uma tensão toda particular, já que traz alívio ao paradoxo que está na origem da obra: como criar no que já está pleno (ainda que vazio), no que já é completo (ainda que sem nada dentro)? A capacidade que tem o trabalho de jamais repetir-se (mesmo quando desdobra-se em centenas de obras), sua condenação à singularidade, deve-se a isto. A multiplicação do trabalho em Mira não é resultado da encarnação de um eu irradiante e solar, como em Picasso, mas da expansão gasosa de um eu circunscrito, mais próximo de Klee.
O duplo nó do trabalho – de um lado, a tensão entre um elemento fecundante, normalmente a linha, e um suporte já pleno (que chamei de individuação problemática) e, de outro, a enunciação multiplicadora desta questão, o que de certa forma a resolve (que chamei de divertimento) – só pode dissolver-se no tempo, aos poucos, trabalho a trabalho. De todos os artistas de sua geração, Mira foi provavelmente a que menos deixou transparecer o aspecto projetual de seu trabalho. Ele não parece propor aos homens nada além de melhorá-los por dentro e, se possível, a partir do que já são, sem mexer muito nas coisas. Mira tinha horror às grandes ênfases, aos sistemas acabados (tinha uma antipatia toda especial pela simetria e pela perspectiva), aos grandes projetos. Era amiga do que na vida é espalhado e miúdo.
Mira Schendel, Sarrafo, 1987.
Certa vez, em Veneza, ela voltava para o hotel numa noite chuvosa e fria. A praça San Marco, encharcada, estava deserta, mas uma latinha de Coca-Cola, soprada pelo vento, se arrastava para lá e para cá. Mira gostava muito de contar esta história, meio maravilhada, e não é difícil entender por quê. Estão aí todos os elementos do seu trabalho: o campo vazio, mas pleno (a praça), e o indivíduo intruso, que o desperta (a latinha). Estão aí também a solidão de quem contempla a cena, a praça que a precedeu e que a sucederia, a noite, a umidade, o desamparo do elemento arrastado pelo vento, a desproporção entre a latinha industrial e a eternidade da praça, daquela praça. Está aí, ainda, o divertimento, que deteve sua caminhada e prendeu sua atenção. Em sua última viagem à Europa, me trouxe de presente um belo livro de Richard Long. Acho que sentiu-se atraída pelo modo como Long – ao contrário da Land-Art americana, que trabalha com grandes deslocamentos de terra – altera todo o campo da paisagem com uma única linha de pedras enfileiradas. Se pudesse, acho que Mira faria isso com o ar, com o vento.
Folha de S.Paulo, 7 de julho de 1996, Caderno Mais!; Paulo Pasta, São Paulo:Edusp, 1998.
1. A idéia é de Rodrigo Naves, em texto do catálogo da exposição de Mira Schendel na Galeria Camargo Vilaça, em 1994.
2. Trabalho remontado na Bienal Internacional de São Paulo em 1994 e na Galeria Millan Antonio, em 2006.
3. Como se sabe, título de um livro de Monteiro Lobato.
4. Difícil não lembrar, aqui, dos fragmentos de Pascal sobre o divertimennto. "[Os homens] têm um instinto secreto, que os leva a procurar divertimentos e ocupações exteriores, nascido do ressentimento de suas contínuas misérias; e têm outro instinto secreto, resto da grandeza de nossa primeira natureza, que os faz conhecer que a felicidade só está, de fato, no repouso, e não no tumulto; e, desses dois instintos contrários, forma-se neles um projeto confuso, que se esconde de sua vista, no fundo de sua alma. [...] E assim se passa toda a vida.” Pascal, Pensées, ed. Brunschvicg, frag. 139. Paris: Garnier, 1955.