A luta (Muhammad Ali e George Foreman)/1999
Poucas vezes tantas contradições se juntaram num único evento esportivo. O moço contra o velho, a força contra a arte, a dança contra a imobilidade, os braços contra as pernas, a seqüência de socos monótona e contínua, que cava um buraco no saco de areia de treinamento e a variação inesgotável de golpes, o bater parado e o bater em movimento, a contenção na fala (associada à violência máxima e ininterrupta no ringue) e a fala descontrolada (associada à economia de esforços no ringue), o bom moço americano, agitando suas bandeirinhas ao ganhar o ouro olímpico e o traidor da pátria (nenhum vietcong o chamou de nigger) e da religião (seu nome adotivo é muçulmano). A luta entre George Foreman e Muhammad Ali estava fadada a ser, esportiva e culturalmente, um dos eventos mais intensos da história do esporte. Que tenha sido realizada em Kinshasa, a capital do antigo Congo belga, ponto de partida para o percurso rio adentro até aquele “O horror ... o horror...” conradiano,1 transformada agora em capital confusa de uma ditadura tropical, parece apenas acrescentar um último elemento a este conjunto de oxímoros.
Poucas vezes, também, as características propriamente esportivas do evento se prestaram com tanta legitimidade à propagação de seus conteúdos simbólicos. Pois se é a causa negra, com shows de James Brown e B.B. King, que vai se afirmar no terreno ambíguo de Kinshasa (cidade a um só tempo demasiado ancestral, com suas tempestades diluvianas inundando tudo e o rugido de um leão dentro do perímetro urbano, e demasiado recente, com os destroços e resíduos do capitalismo mais violento em forma de favelas, caos e gente famélica), nenhum esportista poderia encarnar suas aspirações de modo tão cristalino quanto Ali. É que ambos (Ali e a causa negra) sentiam-se prontos para a mesma coisa: sublimação, inclusão de novos conteúdos, aumento de repertório, ambiguidade simbólica, em suma – autonomia. A adequação do estilo de Ali às dores de crescimento do movimento negro está no centro desta luta.
O boxe é a borda do esporte. Pouquíssimo instrumentalizado (não há bola, nem tento, nem rede, nem raquetes – é a própria existência física do oponente que se procura anular, levando-o ao coma temporário), recoloca sem cessar a pergunta pela sua legitimidade enquanto esporte. O vocabulário que cerca a nobre arte é a expressão empolada e um pouco cômica desta necessidade de sublimação. Algo precisa distingui-la da briga cega, e a catalogação minuciosa dos golpes ou a falsa ciência na contagem dos pontos procuram apontar para um território onde o pensamento possa pousar. É claro que a linhagem de boxeadores técnicos, cujo patrono talvez seja o médio Sugar Ray Robinson, ajuda a ritualizar a briga e transformar o desfecho sangrento em necessidade, consequência natural de mediações lentamente acumuladas. Desde que Cassius Clay pisou num ringue, no início dos anos 60, o ciclo se fechou: até que enfim um peso-pesado, guardião atávico da brutalidade e da coesão primatas, bailava em torno do alvo, driblava-o, adiava os próprios impulsos, disfarçava-os, mudava de ritmo (muito da força de Mike Tyson, com sua violência crua, sua incapacidade de defender-se, seus golpes sem preparação, vem de um certo retorno do reprimido: com ele, é a sublimação representada por Ali que beija a lona). Pela primeira vez era possível ler um peso-pesado, seguir o fluxo de seu raciocínio, deixar-se emaranhar em sua estratégia. Pela primeira vez a capacidade que tem a luta de simbolizar a vida, não apenas em seus aspectos primários e condenáveis, deixava-se perceber claramente, mesmo entre os lutadores gigantes. Com Ali, o boxe tornou-se uma linguagem a ser recitada alto e não apenas tartamudeada numa roda de aficcionados – por isso, mais do que tudo e do que todos, Ali falava. Com sua ajuda, a causa negra vai percorrer um percurso semelhante, saindo do gueto e aspirando a uma universalidade nova.
É esta encruzilhada de questões que duas obras excelentes tentam captar. Trata-se de uma pequena obra-prima, o documentário Quando éramos reis, de Leon Gast, filmado em 1974 mas montado na década de 90, ganhador do Oscar de melhor documentário de 1997, e do intenso A luta,2 de Norman Mailer, publicado originalmente em 1975. Em meio a diferenças enormes, as duas obras mantêm em comum uma espécie de pasmo contínuo diante da riqueza extraordinária do que vão encontrando em Kinshasa. Em ambas, a natureza fabulosa está posta de lado. Nada de selvas, rios, animais. Estamos falando de homens ou, melhor, de personagens, figuras premeditadamente construídas que aparecem, nas mesmas cenas às vezes, em ambas as obras. Não há ninguém propriamente comum aqui: a começar pela dupla Ali e Foreman (o talento de Ali não nos deve fazer esquecer a inteligência tranqüila, extremamente concentrada e coesa, de Foreman), passando por Bundini (o manager-amigo de Ali, a língua ainda mais audaz do que a dele), por Don King jovem (espécie de canalha messiânico que citava Shakespeare), por Archie Moore a serviço do corner errado (derrotado por Ali em seu final de carreira e fazendo parte agora do staff de Foreman, o estilo de Moore só pode identificar-se com Ali). O veículo deste “drama em gente” é a fala, praticada voluptuosamente, até a exaustão, por tudo e por todos – Ali fala, Bundini fala, Don King fala, James Brown fala, Foreman (mais lento) fala, as paredes falam. Há uma espécie de loquacidade insana no ar, tão fluente e contínua que parece abandonar qualquer objeto. Mais do que veículo de um conteúdo, trata-se de um mantra auto-suficiente que se expande e se contrai sem verdadeiramente avançar. Seu fascínio não está numa cadeia de idéias, mas na capacidade sempre renovada de dizer a mesma coisa de outro modo, sem titubear, sem hiato, contínua e ininterruptamente, misturando-se ao próprio ar que os interlocutores respiram. Aqui não se conversa. Aqui se prega, está-se tomado pelo demônio da palavra, por séculos de opressão e violência que exigem reparação. Não se quer propriamente atrair alguém para determinado ponto de vista, mas mostrar-lhe um mundo vivo que basta a si mesmo, sinalizado num jargão próprio, em distorções semânticas e de pronúncia. A música de James Brown é a prosa destes pregadores negros, e o jazz sua poesia. Em sua inventividade verbal quase inesgotável, estes personagens, captados em ato pela câmera do filme, estão para o dialeto simplificado das gangues mais recentes como a música de James Brown está para o rap.
Mais do que todos, no entanto, é Ali quem fala. Talvez esta seja a principal vantagem do filme sobre o livro – captar o fluxo inesgotável de seu discurso. Ali fala correndo, fala treinando, fala lutando contra George Foreman. Ali provoca, pede aplauso, dá respostas desconcertantes, faz discursos, lê poemas chatos – mas, principalmente, Ali fala de Ali. É este outro eu, espécie de criança mimada, que pica como uma abelha e voa como uma borboleta, intocada pelo cansaço, pela idade, pelas derrotas para Joe Frazer (com um knock-down espetacular) e para Ken Norton (que lhe quebrou a mandíbula), é este retrato dourado de suas expectativas que Ali provoca e circunda o tempo todo. Encurralado no canto do ringue de uma luta que todos, mesmo os integrantes de sua equipe, consideravam perdida, é com o frágil tecido das próprias palavras que Ali vai erguer seu escudo, um pouco como um condenado à morte que recitasse um hino (e escapasse à execução).
Esta transformação da auto-estima em personagem exteriorizada, com o qual todos – entrevistadores, fãs, treinadores, adversários – têm de saber lidar, é uma das invenções mais impressionantes de Ali. Basta comparar com a clivagem semelhante entre duas faces de outro atleta excepcional – Pelé. De um lado, o moço pobre, humilde e solidário, Edson Arantes do Nascimento; de outro, a estátua de bronze inalcançável, adormecida no formol dos deuses, do mito Pelé. É a distância profilática entre os dois que está sendo enfatizada aqui. Para Muhammad Ali, ao contrário, a estátua, como a do Commendatore de Don Giovanni, ganhou vida, e está cobrando os seus direitos. É ela quem sobe ao ringue e luta mas é ela, também, quem anda, dorme, dá entrevistas, corre, treina etc.
Uma das dificuldades maiores do livro de Norman Mailer é lidar com este mito de carne e osso. O Ali de Mailer é na verdade um personagem de Hemingway, como o pescador sem sorte de O velho e o mar, mas que tivesse trazido o seu peixe inteiro para casa. Há um certo vitalismo que atravessa todo o livro, uma luta entre “forças vitais” (o termo – n’golo em congolês – se repete mais de uma dezena de vezes) e o cansaço, o envelhecimento e a morte. É um tema, no fundo, que pertence mais ao autor do que a Ali. Será que Norman Mailer consegue correr cinco quilômetros? Será que está velho? Será que consegue atravessar a sacada de seu quarto de hotel debruçando-se sobre o abismo? Será que dá sorte àqueles por quem torce? Questões aborrecidas como estas são recorrentes no livro e apontam para uma de suas dificuldades centrais: qual o estatuto do narrador? Sim, porque em vez de um prosaico eu, o termo utilizado é Norman – indeciso em sua ironia, é fraco como personagem e excessivamente presente como narrador. A estátua de Norman Mailer tem os pés de barro, e a dificuldade desta passagem entre o eu e Norman é a imagem invertida do veio central da força de Ali, da pura exterioridade de suas palavras. A idéia do ciclo vital, da personagem que se mede com a natureza e ao sofrer a derrota adquire ou proporciona conhecimento, temas de Melville e de Hemingway a que Mailer se filia, é totalmente alheia a Ali. Seu n’golo tem a cara-de-pau (irônica e bem humorada, mas também bastante séria, a ponto de socorrê-lo em seus momentos mais difíceis, como durante a própria luta ou gritando vamos dançar? para uma platéia de velório nos vestiários antes do ínicio do combate) de procurar encarnar seu próprio mito, para fora do tempo e do ciclo da natureza.
Mas é preciso ser justo com este livro excelente. Poucas vezes um acontecimento esportivo terá sido tão bem tratado quanto nas páginas sobre a própria luta. Vale a pena conferir pelo filme o que Mailer descreve. Trata-se de uma obra-prima em três atos (e três surpresas). A primeira, executada inteira no primeiro assalto, são os diretos de direita (um dos golpes mais potentes do boxe mas, também, um dos mais expostos) com que Ali atacou Foreman durante todo o assalto. É como se ao lutar com um urso você pulasse em seu pescoço. Quando todos esperavam que saracoteasse pelo ringue, fugindo das patadas de Foreman, Ali fuzilou-o seguidamente com seu golpe mais explícito. O nome do golpe guarda a verdade da luta: um direto, aquilo que não tem subterfúgios nem desvios. Esta será a luta de Ali: um pouco como “A carta roubada”, de Poe, surpreende pelo óbvio, renunciando à retórica poderosa de seus golpes.
Este aspecto fica ainda mais claro na inversão de sentido do segundo assalto. Depois do gongo, Ali recua para as cordas e, em oposição a tudo o que fizera no assalto anterior, deixa-se prender no canto do ringue. Foi um movimento tão surpreendente que o escritor Georges Plimpton, que assistia à luta com Norman Mailer, chegou a pensar em marmelada.
Provavelmente, tudo o que Ali não poderia fazer era isto: ficar parado diante de Foreman, renunciando ao seu extraordinário jogo de pernas e deixando-se surrar. Mas talvez por intuir que um tufão também pode ser vencido desde o centro, Ali adere àquilo que o adversário tem de mais temível, colocando-se demasiado próximo dessa força para ser ferido. É assim que Foreman perde a luta, gastando toda a sua energia enquanto despeja seus golpes quase mortíferos (e que por milímetros não derrubam Ali) durante seis assaltos consecutivos, ouvindo suas provocações (“Isso é tudo o que você consegue?”, “Você não bate, empurra” etc.), sem conseguir livrar-se deste parasita enrolado a seu tronco.
O nocaute de Foreman no final do oitavo assalto é o terceiro ato que coroa tudo o que a luta prometera. Depois de um primeiro assalto surpreendentemente ativo e de sete assaltos surpreendentemente passivos, Ali sai das cordas, trocando de posição com Foreman. Uma rápida seqüência culmina com um golpe de direita que faz Foreman girar em torno de Ali e cair para não se levantar mais. A imagem de Ali olhando fixamente a queda de Foreman em torno dele, a direita engatilhada para mais um golpe que não chega a utilizar (embora tivesse tempo para isto), é uma das mais belas da história do boxe. Ela resume toda lisura e refinamento de Ali, sua noção de gasto exato de energia, de proporção entre meios e fins, de que não se golpeia um adversário caindo (lembremos do golpe de Foreman contra a nuca de Frazer). Tem-se a nítida impresssão de que Foreman poderia ainda levantar-se (houve dúvidas se o juiz contou até oito ou até dez), mas que desiste, tão deprimido quanto nocauteado. Na verdade, a contagem aberta pelo juiz diz respeito a anos, e não a segundos: mais de dez vão se passar antes que Foreman supere o trauma desta luta,3 e retorne vitorioso aos ringues.
1. Joseph Conrad, O coração das trevas. Edição original: 1902.
2. Tradução de Cláudio W. Abramo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
3. Desiludido, Foreman abandonou o boxe em 1977, três anos depois de sua luta com Ali. Voltou em 1987, gordo como um urso, e reconquistou o cinturão aos 45 anos de idade (o mais velho campeão dos pesados da história), vencendo Michael Moore por nocaute.