A noiva desnudada (o teatro de Nelson Rodrigues)/2007
Escrito para o seminário “Nelson Rodrigues e a cultura brasileira”, organizado por Aimar Labaki e Antônio Cadengue, Festival Nacional de Teatro de Recife, dezembro de 2006. Publicado em Piauí, nº 7, abril 2007
1.
O pai do teatro moderno brasileiro tem uma dessas fixações, típicas de suas personagens, pelo arcaico. Esta fixação constitui o centro poético de seu trabalho e responde por uma força de retorno de que a cultura brasileira parece não conseguir escapar. Contemporâneo do Estado Novo, que praticamente fundou a sociedade civil brasileira, determinando seus direitos e papéis, ao mesmo tempo em que a traiu com seu autoritarismo e violência, a obra de Nelson Rodrigues mimetiza um pouco destas características antagônicas – além de enunciar, num leque que vai do bufo ao quase-trágico, que o “país do futuro” deixa sempre para trás alguma coisa que retorna, que retornará.
No entanto, em seu trabalho há um menu deslumbrante de conquistas modernas, que marcaram época e não podem ser diminuídas: a orali- dade extraordinária de seu texto, mais profunda talvez que a de nosso primeiro modernismo e comparável apenas àquilo que a canção popular vinha fazendo a partir da década de 1920; a concretude e imediatez dos temas e das personagens; a liberdade e radicalidade dos procedimentos cênicos; a desmistificação de assuntos intocáveis; a conversão da hipocrisia social brasileira em matéria cênica. Estes são traços que marcaram nosso teatro com tamanha profundidade que se pode sem favor dividi-lo em antes e depois de Nelson Rodrigues. No entanto, como não perceber que todos estes procedimentos parecem tantas vezes olhar para trás, como que votados a afirmar o insuperável preconceito, o insuperável arcaísmo? Esta ambivalência marca a obra de Nelson Rodrigues como a de nenhum outro artista brasileiro – é ela que lhe dá especificidade.
Claro que é possível encontrá-la em outras obras, muito diversas da sua.1 Carlos Drummond de Andrade, que alcança pela primeira vez na poesia brasileira uma voz universal, que o habilita a dirigir-se dire- tamente a Charles Chaplin, ao russo em Berlim, ao mês de dezembro ou a Stalingrado, é também o poeta da família, dos bens e do sangue, do pai que nada dizia. O espaço público e a família arcaica também aqui se entrelaçam, em silêncio e melancolia. Muito da força do trabalho de Clarice Lispector vem da vizinhança entre o particular claustrofóbico da zona sul carioca e o universal informe, com a força da água ou da lava, que habita suas personagens – o lento percurso entre a boca e a barata, em g.h., está emoldurado pelas paredes de um pequeno apartamento de classe média, e ganha força e especificidade a partir deste contraste. Nestes, como em outros autores, o moderno e o arcaico tensionam-se numa luta de fundo que parece longe de resolver-se. Mas de nenhum é possível dizer que esta tensão seja o foco e a própria visão de mundo do autor.
É preciso lembrar que o trabalho de Nelson aparece entre nossos “dois modernismos” – o da década de 1920 e o da década de 1950 – sem que pudesse herdar nada do primeiro, nem dialogar diretamente com o segundo. A obra dramática de Oswald de Andrade, embora publicada nos anos 30, só circularia definitivamente nos anos 60.2 Nelson parece construir suas peças a partir do nada – é assim, ao que tudo indica, que ele mesmo se via. Sua obra seria uma conversão espontânea do vaudeville em tragédia, movida por desgraças pessoais e traços de personalidade. Ainda que superficial e mistificante, esta interpretação aponta para um traço fundamental de seu percurso – a ausência de um movimento que o amparasse, de uma câmara de ecos coletiva que pudesse acolhê-lo e criticá-lo. Ao contrário da simulação de mundo própria das vanguardas, o trabalho de Nelson sempre esteve no mundo real – no aplauso e na consagração de Vestido de noiva, na censura e má receptividade das “peças míticas”, nas crônicas de “A vida como ela é”, na personalidade pública, meio bufa, meio trágica, que o próprio Nelson criou e vestiu. Assim, é sob a rubrica de um nome próprio e de uma existência concreta, exposta à luz da publicidade, da maledicência e das colunas de jornal, que toda sua obra se fez – sem a chancela de termos ou movimentos como poesia moderna, verso livre, bossa-nova, arte concreta ou neoconcreta, tropicalismo, cinema novo etc. Até mesmo Oscar Niemeyer, um “caso único” semelhante a Nelson, encontra na colaboração direta com a influência-Corbusier, no prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, uma origem para afirmar e negar. O teatro moderno brasileiro, ao contrário, parece nascer sob o signo de um caso (palavra que na obra de Nelson conota a atração e o pecado antimatrimoniais). Com isto, a inserção nos movimentos internacionais, reivindicados pela própria produção local, que marca nossos movimentos de renovação, fica elidida aqui. Quem influenciou Nelson? Como a resposta demora, a pergunta seguinte – gênio ou empulhação? – é que se apresenta rapidamente. Não estou dizendo que seu teatro não pertença a seu tempo – O’Neill, Tennessee Williams, o teatro do absurdo, mesmo Brecht e Artaud influenciaram suas peças ou foram em muitos aspectos antecipados por elas. O que chama a atenção, no entanto, é a falta de conexão cosmopolita que cercou a sua produção ao longo dos anos. O isolamento suburbano, a que pertencem suas personagens, acabou dominando a própria recepção de sua obra, e a imagem que seu Autor fazia dela.
Não é de estranhar que o grande inimigo, a grande vítima da verve de Nelson seja todo e qualquer cosmopolitismo. Psicanálise, Arte Moderna, homeopatia, Brasília (“Descobri o michê na inauguração de Brasília!”, diz a grã-fina de Boca de Ouro) são vítimas diletas de seu deboche e de seu humor. A bossa-nova, a abertura da economia, a transformação do Rio de Janeiro num centro turístico internacional parecem antípodas desse teatro, que propõe, ao invés da garota de Ipanema, a falecida, ao invés do amor-livre, o tesão pela cunhada, ao invés da inútil paisagem, o subúrbio eternizado. À doce exogamia das canções de Jobim, aberta à influência externa e à confluência do que foi a canção popular até ali, Nelson opõe a endogamia de uma originalidade nascida de si mesma.
No plano pessoal, em que pese a dimensão pública que alcançou, é preciso distinguir Nelson de outras personalidades culturais públicas brasileiras, que parecem todas se universalizar através de um veículo chamado Brasil. Sem este medium, pela plataforma de sua atividade específica, dificilmente uma figura intelectual consegue ganhar verda- deira amplitude pública entre nós. Se isto já estava presente em Mario de Andrade, ganhará com certeza uma dimensão quase trágica em Glauber Rocha, de quem se pode dizer que morreu de Brasil, e ainda em Darcy Ribeiro, José Celso, Hélio Oiticica ou Caetano Veloso. O universal destes autores não é tanto a Arte ou a Cultura, mas o País, ou uma fusão dos dois. Fazem nascer, assim, um Eu-Nação permeável a todas as discrepâncias e mazelas nacionais, que acolhem primeiro subjetivamente para depois devolver em obra. Própria de momentos de grande tensão objetiva, quando a transferência para uma subjetividade parece fazer a unificação prévia de uma matéria discrepante que não se deixa sequer esboçar, quanto mais compreender, esta dimensão nunca esteve presente em Nelson. Sua persona foi sempre mais específica, parti- cular e lenta – o reacionário, aquele que não se universaliza, como uma má notícia ambulante a assombrar a velocidade do mundo lá fora. Carioca (embora nascido em Pernambuco), mais do que brasileiro, suburbano, mais do que cidadão, o particular é sua matéria, entendido como o detalhe significativo que produz escândalo, denotando a falsidade do resto. É em nome deste particular incabível, que não circula nem quer circular, que Nelson articula toda a sua obra. O impulso de colocar as tensões em contato para dissolvê-las, próprio das personalidades oceânicas citadas acima, não faz qualquer sentido para ele. O país em cujo nome fala não é aquele que se procura, mas o que não se deixa ir – aquele que ao ser esquecido volta para assombrar.
A esta grande dicotomia entre moderno e arcaico corresponde uma outra, igualmente intensa, e que atravessa boa parte de sua obra: aquela entre mundo familiar e mundo público. A separação entre os dois não é, obviamente, uma originalidade sua, tendo início na própria tragédia grega, mas ganha com seu trabalho uma feição específica: a de uma contigüidade inerte, sem contato profundo, entre os dois mundos. O mundo familiar, em quase todo o seu teatro (a exceção seriam as “peças míticas”), está continuamente açodado pela esfera pública. Atropelamentos, repórteres, delegados, bicheiros, manchetes de jornal, bares, sorveterias, chopp, homeopatia, psicanálise, nomes de figuras públicas (Portinari, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Otto Lara Resende), enfim, todo um repertório urbano/cultural circula em suas peças – sem, no entanto, criar propriamente tensão com os eventos que sucedem dentro da esfera familiar. A ambivalência que caracteriza todas as personagens de Nelson (volto a isto logo adiante) só não aparece naquelas que pertencem à esfera não-familiar.3 Delegados são estupradores e apenas estupradores, jornalistas são canalhas e apenas canalhas, médicos são pedófilos e apenas pedófilos, o senador é sempre nomeado pelo telefone, o vendedor de caixões não leva adiante seu interesse por Zulmira (em A falecida). O mundo público é estático, pertence por inteiro a uma única polaridade e não partilha do sistema de reversões característico de Nelson. Se nas peças míticas o quadro familiar está isolado, posto em lugar-nenhum, a recuperação do concreto e da circunstância (já presentes em Vestido de noiva) a partir de A falecida perturba o mundo familiar sem penetrá-lo verdadeiramente. O espaço público é um enorme canalha sempre externo, açodando a família sem alterá-la, acionando de fora os seus demônios. O melhor exemplo talvez seja O beijo no asfalto, em que a esfera pública – o beijo se deu no asfalto, na rua, sob o olhar da população – é gradualmente invadida pela privada – o “drama familiar” de um marido supostamente homossexual – através da mediação perversa da polícia e da imprensa. O resultado só pode ser o escândalo, a intimidade invadida pelo público, que constitui talvez a verdadeira dimensão da esfera pública no teatro de Nelson. Este escândalo pode se concretizar (como em O beijo no asfalto) ou não (como em Vestido de noiva), mas está sempre ali, amplificando o drama íntimo e fazendo a passagem até o espectador, de quem, no fundo, se espera que se escandalize. Este escândalo é sempre um ponto de vista exterior, um fora, um lugar de onde olhar a intimidade revelada. Se compararmos O beijo no asfalto a Longa jornada noite adentro, de O’Neill ou a Quem tem medo de Virginia Woolf ?, de Edward Albee, perceberemos a diferença. O espectador, nestes casos, está posto no mesmo patamar das personagens – pode sentir abjeção pelo que vê, mas mistura-se àquilo. Em Nelson, a iminência do escândalo, este híbrido de publicidade e intimidade, em muitos momentos ampara o espectador, possibilitando uma visada externa onde se refugiar (ausentes em Albee ou O’Neill), uma voz coletiva, chapada – aquela das manchetes de jornal ou das máximas morais ou imorais, tão características do seu texto. Assim, se de um lado a presença das ruas, das personagens urbanas, amplifica e traz para o concreto a pulsão interior de personagens definidas pelo papel familiar, de outro oferece, através da face impessoal e coletiva de todo escândalo, um refúgio de onde olhar.
2.
Esta grande ambivalência entre arcaico e moderno, coração do trabalho de Nelson, desdobra-se num complexo sistema de dicotomias entre as personagens e no interior delas, que constitui talvez o principal traço estilístico do seu teatro. Pode-se dizer que não há Nelson Rodrigues sem este sistema de complementaridades, que se impõe de imediato. Vale a pena enumerar, sem querer esgotá-los, os opostos de que tratam as peças: moral/imoral, virginal/sexualmente dissoluto; grã-fino/pequeno burguês; zona sul/subúrbio; preto/branco; legal/ilegal; normal/anor- mal; prostituta/esposa; vício/virtude; casamento/enterro; pecado/ graça; fidelidade/infidelidade; rico/pobre; choro/riso; ouro/madeira; empregado/vagabundo; enterro/casamento; marcha fúnebre/marcha nupcial; vestido preto/vestido branco etc. etc.4 Assistir a uma peça de Nelson é entrar em contato com estes pares dicotômicos, simétricos ou prometendo simetria, que se espalham pelo texto, pelas personagens, pelo cenário, pelas imagens, pela iluminação, pelos gestos dos atores. Um pouco como nos mitos analisados por Lévi-Strauss, há uma alusão constante a um campo de correspondências, que recai sobre si mesmo – um platonismo insuspeito, feito da “lama das ruas”.5 Muito da grandeza de Nelson virá da criação destes micro-sistemas (quer em tecla elevada, nas “peças míticas”, quer com matéria suburbana, nas demais), que dão à cena uma tensão constante com o todo, como se uma única quantidade de energia habitasse a peça a cada momento. No que diz respeito às personagens, este sistema pode dar-se de duas formas: pela presença simultânea de personagens conflitantes ou pelo desvelar contínuo da ambivalência no interior de cada uma delas. É a soma destes dois recursos que caracteriza seu teatro: primeiro, a criação de oposições nítidas entre as personagens (a prostituta devassa e o marido virtuoso postos em cena); e, em seguida, a inversão destas características no interior delas, que passam a ocupar o lugar deixado umas pelas outras (o marido é que é devasso e a prostituta, pura). Como num jogo de cadeiras, há um número fixo de papéis, de características humanas, que deve estar sempre preenchido: canalha ou virtuoso; virgem ou prostituta; bom ou mau; sincero ou falso; fiel ou infiel. As peças devem à passagem entre estes caracteres a sua mobilidade extraordinária.
Raramente acontecimentos exteriores revelam as personagens – ao contrário, elas é que enunciam por si mesmas aquilo que realmente são, aquilo que esconderam ao longo da peça. Confessam, querem confessar, querem denunciar o que esconderam, como se não suportassem seu segredo. “D. Senhorinha, (triunfante): Era essa a confidência – a coisa íntima que eu queria lhe contar, meu filho. Fui sempre fria!” (Álbum de Família). As peças mantêm desse modo a estrutura de gran-finale que caracteriza os folhetins em geral e as próprias crônicas de Nelson Rodrigues, em “A vida como ela é”. A dicotomia básica entre interior e exterior, entre personalidade e destino, entre passividade e atividade, entre humano e divino, própria do mundo trágico, é trocada por um teatro de paixões que pertencem inteiramente às personagens, faltando apenas explicitar-se. Estas paixões não são sucedâneos interiorizados do Destino, como os “demônios interiores” a que se referia O’Neill em sua caracterização da tragédia contemporânea – são caracteres, de fundo moral, que as personagens vestem e trocam. Há pouco daquela passividade trágica diante do destino nestas peças. Basicamente, todos são ativos, apenas talvez não se conheçam ainda – não saibam que eles mesmos choram por um olho só. Mas logo denunciarão a si mesmos, ou compreenderão sua verdadeira dimensão – em Os sete gatinhos, “seu” Noronha primeiro confessa prostituir as filhas para depois derramar a lágrima única, anunciada.
Não há, portanto, interiorização, por parte das personagens, daquilo que lhes sucede. A resistência é mínima e a mobilidade, máxima. Em Toda nudez será castigada, Herculano é um homem virtuoso: vida sexual tediosa com a esposa e nenhuma depois de viúvo. Patrício deixa a foto de uma mulher nua e uma garrafa de uísque a seu lado. Na seqüência, Herculano transforma-se num verdadeiro fauno, com direito a 72 horas de sexo com Geni (a mulher da foto). Nada sustenta por muito tempo aquilo que foi caracterizado, tudo tende à transformação e à catarse. As personagens são rasas – moralistas que em dois segundos tornam-se imorais, próceres da masculinidade que se revelam homos- sexuais etc. – para que a dinâmica da peça não se perca. A própria caracterização corporal das personagens aponta para isto – em coma (Vestido de noiva); com as mãos cortadas (Senhora dos afogados); andando sempre para trás (Bonitinha, mas ordinária); chorando por um olho só (Os sete gatinhos); representadas por um vaso ou um par de botas (Dorotéia); por uma dentadura de ouro (Boca de ouro); pela obsessão do enterro (A falecida) ou dominadas por uma frase (Bonitinha, mas ordinária)6 – ou ainda suando, espremendo espinhas, arregalando os olhos. É sempre o lado maquinal do corpo que aparece. Como cartas de baralho, as personagens circulam velozmente, cedendo e herdando características umas das outras. Com isso, as peças ganham velocidade e dinâmica únicas. Parecem um carro desgovernado caminhando para uma revelação que, no fundo, talvez não importe tanto. É a própria dinâmica da peça o seu grande achado, e é em nome dela que a ambivalência de sua visão de mundo – moral? imoral? moderna? arcaica? – se justifica. No fundo, esta ambivalência está a serviço de uma estrutura teatral que prevalece, e que confere atualidade a Nelson. Conhecido pelos conteúdos que veiculou, por praticar um teatro que, como ele mesmo disse, “é por si só capaz de levar o tifo e a malária à platéia”, talvez seja a partir do trabalho formal, subjacente aos conteúdos, que sua obra estabeleça diferença e identidade.
Pois ao lidar com personagens de pouca espessura, e que não ganham densidade ao longo da peça, Nelson acaba por criar um teatro profundamente moderno, onde os meios e os conteúdos equivalem-se, trocando constantemente de lugar. Por isto as imagens irradiantes que as peças veiculam – a dentadura de ouro (Boca de ouro), o vestido de noiva, as mãos amputadas (Senhora dos afogados), os muros que crescem sem parar (Anjo negro) –, bem como as frases que condensam e mimetizam as inversões dos caracteres, têm a mesma espessura e importância que as personagens. Alguma coisa se desloca constantemente para estas imagens e frases que as personagens emitem, como se fossem seres autônomos, incrustados nelas, de alguma forma deslocados de quem as enuncia.7
Otto Lara Resende, ou bonitinha, mas ordinária explicita este raciocínio. Como se sabe, a frase “O mineiro só é solidário no câncer” retorna ininterruptamente ao longo da peça. Vale a pena ver em detalhe a introdução deste mote. Edgar e Peixoto conversam num canto de bar, quando Edgar se confessa tomado por uma frase: “Não penso em outra coisa. Palavra de honra!” [...] “Mas olha a sutileza. Não é bem o mineiro. É o homem, o ser humano. Eu, você, qualquer um, só é solidário no câncer. Compreendeu?” E, em seguida: “O mineiro só é solidário no câncer. E eu sou mau-caráter, pronto! Mas escuta. O que é que eu devo fazer?”. E ouve então a proposta canalha: casar por dinheiro com uma jovem violentada. Edgar primeiro amplifica o valor da frase, universalizando-a, tornando-a uma máxima que valeria para todos (“Não é bem o mineiro. É o homem, o ser humano”) para depois, subitamente, particularizá-la, aplicando-a a seu caso (“E eu sou mau-caráter, pronto!”). Este movimento do mais geral ao mais particular, sem construção alguma no meio, é constitutivo da própria forma do teatro de Nelson, que pula constantemente de um extremo ao outro – do tema geral àquela personagem em particular, sem construir a passagem entre um e outro.
Por isto as máximas são tão freqüentes em seu texto. Ao soltá-las, as personagens aliviam o entrecho das tarefas da construção psicológica. Quando Edmundo, em Álbum de família, diz “Seria tudo melhor se em cada família alguém matasse o pai!”, ele está se desobrigando de qualquer ambigüidade, de qualquer espessura interna. Esta frase ficará colada a seu nome, como um aposto. O mesmo com Misael, em Senhora dos afogados, quando diz “A mulher só devia trair no leito conjugal”, ou com Lídia, em A mulher sem pecado, quando diz “Conhecer o amor, mesmo do próprio marido, é uma maldição”. Repare o leitor que são frases que mantêm uma espécie de estrutura do recalque, ou seja: são o oposto do senso comum, o negativo de um positivo. Assim, contrariam mais do que afirmam. Quem diz “As mulheres só deviam amar meninos de dezessete anos”, como Clessi em Vestido de noiva, está dizendo o contrário da frase “As mulheres nunca deviam amar meninos de dezessete anos”, que o espectador “ouve” em negativo. Assim, a ambivalência da personagem fica logo circunscrita a estes extremos, facilitando a mobilidade entre eles.
Há, na verdade, em todas as peças de Nelson uma contínua conversão ao teatro, ao recurso teatral, moderna e pouco realista, que luta contra o fluxo também contínuo de conteúdos dramáticos e morais. A ambivalência que procurei assinalar entre o arcaico e o moderno e entre o público e o familiar se desdobra assim numa ambivalência entre forma e conteúdo. É como se o tempo todo o dramalhão se exteriorizasse, fixando-se em frases, imagens, gestos, planos de memória ou de realidade, flash-backs, recursos de iluminação etc. que criam um efeito de distância (para usar o termo brechtiano) algo involuntário.[8] Assistir a uma peça de Nelson é converter-se ao e distanciar-se do entrecho, sem decidir por nenhum dos pólos. Esse entra-e-sai é ambíguo e responde pelo simultâneo olhar para a frente e para trás que caracteriza sua visão de mundo. O teatro é para
Nelson o lugar dessa exteriorização, dessa exposição literal do arcaico em microestruturas que se mostram enquanto tais ao espectador. Esta mímese imperfeita entre entrecho e recurso cênico faz a originalidade de seu teatro e abre seu mundo fechado, endogâmico, à relação e à ambivalência.
A matéria básica de Nelson Rodrigues assemelha-se em grande parte à de Machado de Assis: pequenos dramas suburbanos. Mas é como se a consciência, a fina ironia machadiana tivesse se convertido em teatro, numa estrutura externa ao Autor, não de todo dominada por ele e mais poderosa do que o entrecho que veicula. Assim, não há propriamente consciência, no sentido machadiano, em seu trabalho (muito menos nos romances e nas crônicas) – há um mundo autônomo que acolhe em seu espetáculo um incrível bestiário, sem se deixar subjugar por ele, pondo-o para funcionar numa estrutura aparente, palpável: o teatro. A comparação com os romances e as crônicas de Nelson é inevitável – lá, a riqueza da forma, sendo muito mais limitada, não produz contraste e a vida acaba sendo apenas aquilo que consegue ser: uma colheita de casos entre tipos bem demarcados. Esta estrutura aparente, típica de suas peças, é o grande achado de Nelson, e tem em Vestido de noiva o seu momento mais alto. É em Vestido de noiva que esta duplicidade pela primeira vez se anuncia, e talvez alcance uma plenitude inigualável. É que nela o método de Nelson aparece como nunca – a peça é literalmente a grande personagem da peça, sobrepondo-se a tudo e a todos, convertendo continuamente o imaginário em forma. Correndo o risco de simplificação, e alterando um pouco o esquema de divisão das peças de Nelson feito por Sábato Magaldi, acho que é possível dizer que nas “peças míticas” há predominância do entrecho, em Vestido de noiva e Valsa no 6 há predominância da linguagem e nas “peças cariocas”[9] um equilíbrio entre os dois.[10] Não chamaria a nenhuma de suas peças de “psicológicas”, pois este me parece o traço verdadeiramente excluído de seu teatro.
Um pouco como um penetrável de Hélio Oiticica é um paraíso artificial literalmente materializado num apartamento da zona sul do Rio de Janeiro, o teatro de Nelson é materialização contraditória de nosso atraso. Nele, a estrutura deste atraso, que deveria expressá- lo, mantendo-se neutra, ganha presença e contorno, criando, neste movimento, ambivalência e distância. Ao longo da peça, o espectador pode separar-se deste arcaísmo inevitável, ao perceber seu desenho.
3.
Vestido de noiva começa com o atropelamento de Alaíde. O palco está dividido entre os planos da memória, da alucinação e da realidade. Na verdade, há um quarto plano, o do microfone, que costura toda a peça, tornando as passagens menos bruscas, e que acolherá Alaíde depois de sua morte. Há dois enredos paralelos, que habitarão a consciência de Alaíde em sua dualidade memória-alucinação: A) Alaíde roubou o namorado (Pedro) de sua irmã (Lúcia) e casou-se com ele, mas no dia de seu casamento recebe de sua irmã uma ameaça ou maldição: “Você roubou meus namorados. Mas eu lhe vou roubar o marido”. Esta situação evolui para uma trama onde irmã e marido planejam seu assassinato. O atropelamento é o resultado ambíguo, entre suicídio e acidente, desta ameaça. B) Madame Clessi, prostituta do início do século, apaixona-se por um menino de dezessete anos, em tudo semelhante ao filho que perdeu. Enciumado com a profissão da amante, o menino acaba assassinando-a com uma navalha. Alaíde tem acesso a esta história pelo diário de Clessi, encontrado no casarão em que mora.
A peça se dá, portanto, na passagem contínua de Alaíde entre estes três planos e os dois enredos que veiculam: o mundo de Clessi (de início, no plano da alucinação, mas migrando para o da memória) representando uma agressividade sexual que Alaíde insinua mas não mantém (afinal, num movimento característico de Nelson, passa de algoz a vítima da irmã) e o mundo da própria Alaíde e de Lúcia (de início, no plano da memória, mas migrando para o da alucinação), representando a clássica disputa de duas irmãs pelo mesmo homem, que aparecerá em nada menos que nove das dezessete peças de Nelson.[11] Os dois planos, da memória e da alucinação, naturalmente embaralham-se, a ponto de a montagem de Sérgio Cardoso em 1958 reduzir a divisão do palco a dois planos apenas, realidade e alucinação,[12] mas o que importa é que o duplo entrecho encontra uma correspondência explícita em cena. A ambivalência de Lúcia/Clessi divide literalmente o palco, e as personagens atravessam durante toda a peça esta ambivalência materializada. A carga psicológica é transferida assim das personagens para a peça, cuja principal tarefa é transformar, como uma usina, em recurso teatral a fatalidade e uma certa pobreza do enredo.
O plano da realidade, onde Adelaide agoniza, faz a contagem regressiva da peça, anunciando a morte da personagem e o fim da representação. Assim, desde o início fica claro que este plano é uma espécie de relógio interno da peça – Alaíde vai aos poucos morrendo, embaralhando cada vez mais os dois outros planos, e a peça caminha para o fim. É então que uma coisa extraordinária acontece: Alaíde morre mas a peça sobrevive, roubando literalmente a cena. Esta solução foi polêmica, e sabe-se que Ziembinsky queria acabar a peça junto com a protagonista.13 Pois em que plano nós estamos agora, depois da morte de Alaíde? Memória de quem? Alucinação de quem? Realidade de quem? É no plano do microfone que Alaíde volta de fato a aparecer, depois de morta. Embutido no buquê de flores, a voz de Alaíde sai em off, de lugar nenhum, transformada enfim no que sempre quis ser – puro teatro. É este buquê microfonado que Alaíde, agora um “poético fantasma” (a expressão é de Nelson), entregará a sua irmã. Um buquê que levará para sempre, embutido nele, a sua voz desencarnada, amplificada para todos, vinda de lugar nenhum.
Esta separação literal entre peça e personagem (que não deixa de remeter a Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello), ganha em Vestido de noiva uma versão dramática e, ainda uma vez, ambígua. Pois, longe de constituir um recurso metalingüístico, o descompasso entre meios e entrecho, entre forma e conteúdo, explicitado na sobrevivência da peça a Alaíde, aparece à revelia. É como se a peça quisesse continuar a ser veículo do drama de Alaíde, mas fosse progressivamente tomando consciência de sua autonomia e potência, a ponto de prosseguir depois do desaparecimento da protagonista. É esta característica que dá ao teatro de Nelson Rodrigues a sua verdadeira agonia – uma luta, de que não se apropria inteiramente, entre a riqueza cênica sempre renovada e um conteúdo fechado, que retorna e retorna. É pela lente desta luta, às vezes mais explícita, às vezes menos, que o reacionário se abrirá ao mundo e a noiva despirá o seu fetiche. E, um pouco como Euclides da Cunha em relação a Canudos, é por se lançar na contradição sem dominá-la (seu antípoda, neste ponto, seria Machado) que Nelson Rodrigues conquistou um lugar essencial na visão que temos de nós mesmos.
1.Ver “A grande tristeza”, artigo de Rodrigo Naves sobre Farnese de Andrade, in Farnese de Andrade. São Paulo: Cosac&Naify,
2.Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e encenações, 2a , p. 5. São Paulo: Perspectiva, 1992.
3.A exceção é Boca de Ouro, personagem complexa e difícil de definir – mas não será o bicheiro, justamente, uma figura ao mesmo tempo pública e familiar?
4.“Você está fazendo confusão! Casamento com enterro! Moda antiga com moda mo-- derna!”, diz Clessi para Alaíde em Vestido de noiva. A compreensão do trabalho de Nelson Rodrigues a partir de polaridades como as enumeradas acima pode ser encontrada em “Nelson Rodrigues”, de Décio de Almeida Prado, uma colagem de três artigos de Décio, presente na “Fortuna crítica” de Teatro completo, organização de Sábato Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. Este artigo influenciou em muitos aspectos o ponto de vista que tentei desenvolver. Recomendo vivamente ao leitor que procure conhecê-lo. Ver também, a este respeito, “Uma dramaturgia de opostos complementares”, de Mário Guidarini, e “Uma tragédia da memória”, de Álvaro Lins, na obra citada.
5.A expressão, utilizada por Alceu Amoroso Lima numa conversa telefônica para re-- ferir-se a Nelson (“E então, Nelson, você sempre a remexer nessa lama das ruas?”), encerrou por décadas a amizade entre Ver “Caminhos e descaminhos”, in Teatro completo, op. cit., pp. 286-288, em que Alceu de Amoroso Lima narra o episódio.
6.Ver, a respeito das frases de Nelson Rodrigues, o artigo de Flora Süssekind, “Frases e seu fundo falso”, in Teatro completo, cit., pp. 265-267. Segundo a autora, Nelson traba- lharia com entimemas ou silogismos retóricos, que denunciariam para o espectador “o procedimento pelo qual se forma e reafirma o senso comum”, criando assim “a dúvida quanto à sua confiabilidade”.
7.O cenário, o vestuário e a iluminação ganham também autonomia, e a célebre divisão tripartida do palco em "Vestido de noiva" é o exemplo mais perfeito disto.
8.“A platéia podia esperar por muita coisa, mas não pelo que transcorria diante de seus olhos: 140 mudanças de cena, 132 efeitos de luz, vinte refletores, 25 pessoas no palco e 32 personagens [...]. Mesas e cadeiras subiam e desciam no palco, manobradas por cordões invisíveis. Um personagem se transformava em outro, depois em outro, depois em outro, vivido pelo mesmo Os planos se cruzavam, se sobrepunham, se confun- diam.” Ruy Castro, O anjo pornográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 172.
9.Em vez de “tragédias cariocas”. A questão do trágico em Nelson é complexa e a adequação do termo a seu Teatro ainda está por ser
10.A mulher sem pecado é ainda a pré-história de Nelson e Anti-Nelson Rodrigues poderia ser incluída entre as “peças cariocas”.
11.Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues: Dramaturgia e encenações, cit., p. 21.
12.Ibidem, 89, em que transcreve a crítica de Décio de Almeida Prado comparando esta montagem à de Ziembinsky.
13.“O encenador Ziembinski gostaria de encerrar o espetáculo quando a protagonista deixa de respirar, na mesa cirúrgica. Com base em sua intuição, Nelson não concordou com as críticas, exigindo sempre que se respeitasse o desfecho que escreveu.” Sábato Magaldi, Teatro completo, cit., p. 19.