O guardador de palavras (Alberto Caeiro)/2001
Caeiro traz para o senso comum e a nitidez cristalina este estranho cosmo, indiviso e multifacetado, da poesia de Pessoa, que funde a água triste do Tejo a um destino cifrado nas estrelas. Principal personagem de um dia triunfal, 8 de março de 1914, em que nasceram os primeiros poemas de “O guardador de rebanhos” e em que o maquinário da heteronomia parece ter-se posto definitivamente em movimento, sua obra oferecerá aos demais heterônimos um repouso ético, ou momento de contenção, e por isso será chamado de Mestre. Pois o que a caracteriza, essencialmente, é uma desconfiança em relação ao eu lírico e às suas metamorfoses e identificações – ao alimento principal, em suma, de toda a obra de Pessoa. Como se a expansão indefinida deste “drama em gente” encontrasse em Caeiro, por negação, um foco propriamen-te gravitacional, substantivando o que talvez tendesse à dissipação e à esquizofrenia.
Por isso esta “prosa de meus versos” lembra tanto um exercício espiritual onde a potência metafórica do eu é constante e reiteradamente admoestada, onde o impulso lírico, como uma tentação renovada, nasce apenas para ser negado. Caeiro é um pastor “olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias/ ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho”. São as suas idéias/ovelhas que procura guardar, impedir que fujam pela floresta do alheamento da linguagem, zelando por elas desde o alto de algum outeiro. Vem daí o efeito de distância que atravessa toda a sua poesia, uma presença dissipada na lonjura, uma falta de carne e de matéria, uma sinceridade sem que haja sentimento algum – são as idéias, não as coisas, nem os sentimentos, que o pastor vigia com o cajado de uma língua que se quer quase de mudos, apenas designativa e sem inferência. Este momento zero da linguagem, que encontra na própria existência do poema que se lê um primeiro paradoxo, só pode ser resultado de uma “aprendizagem de desaprender”, de um “esquecer do modo de lembrar que me ensinaram”. A des-educação do eu em sua capacidade lírica depende de um sistema de oposições puramente intelectual, ao qual retornam sempre os poemas: de um lado ficam a falsidade, o sujeito, o nome, a expansão do eu lírico e a linguagem metafórica; de outro, a verdade, o objeto, as coisas, o retorno ao rebanho, a linguagem com o mínimo de expansão e inferência. Movendo-se sempre do primeiro ao segundo pólo, o pastor vai descobrindo (ou, socraticamente, lembrando), por meio de pequenos silogismos, sua única e enorme verdade: o óbvio, aquilo que já estava guardado em nós antes que soubéssemos. É o óbvio a sua principal e surpreendente matéria, sua ovelha reencontrada, resíduo de sua anamnese até um ponto onde o ser e a linguagem ainda coincidem.
“Natural como um dia mostrando tudo”, é somente a partir desta conquista, digamos, metodológica, que a complexa tessitura dos demais heterônimos poderá lançar-se. O neopaganismo arcaizante de Ricardo Reis, o sebastianismo melancólico de Fernando Pessoa, o futurismo whitmaniano de Álvaro de Campos só puderam firmar-se a partir deste presente nadificado da linguagem, que a poesia de Caeiro oferece. Pois será sempre possível entender os grandes sistemas, abstratos e antagônicos, que cada heterônimo representa, como um balido desgarrado à espera de seu pastor.