Vida maravilhosa (Paulo Monteiro e Philip Guston)/1994
Paulo Monteiro, sem título, 1994.
Em uma de suas telas mais famosas, Philip Guston pinta uma figura vista de trás, de capacete, cachecol e casaco, apoiada num plano vermelho horizontal, à qual se contrapõe a vastidão de um horizonte claro. Apesar de ter voltado as costas ao mundo, em sua solidão de monturo na planície, com a altivez e a plenitude subjetiva que a experiência do Expressionismo Abstrato talvez lhe garantisse, esta estranha personagem não pôde evitar que colassem em seu flanco as solas de seis chuteiras ou sapatos, além de alguns seres indefinidos e hachurados. É a este mundo aderente, gosmento, já cheio (um pântano meio pintura meio comics que nos procura mesmo quando fugimos dele), que a solidão quase hilária das personagens de Guston vai contrapor seu misto de resignação e altivez.
A recusa ambígua a um mundo cuja textura não pode evitar faz da pintura de Guston um terreno cediço, cor de carne, de onde emergem sem cessar seres híbridos de tinta e nome. Não se trata apenas de recu-perar jocosamente a concretude das coisas, a familiaridade de nossa vida cotidiana, que a exponenciação subjetiva da Escola de Nova York teria atirado fora. Um trabalho como o de Frank Stella, em seu pragmático e metódico avanço sobre o mundo, talvez respondesse melhor, e com mais potência, a esta tarefa. Em Guston, recuperar e perder, alhear-se e estar dentro são sinônimos. Isolar-se é, no mesmo passo, atrair a si o lodo pegajoso das coisas e das mercadorias. Dar as costas é dar a ver o mundo inevitável (de cuja matéria heterogênea estas mesmas costas são feitas), alienado, mas, a seu modo, pleno – e que não pode, por isto, nascer de novo, desde dentro do seu coração selvagem, como nascia num dripping de Pollock.
Philip Guston, Vista de trás, 1977.
Poucas coisas são tão características de Guston quanto sua intuição singular sobre cheios e vazios. Há em todo o seu trabalho, desde as telas abstratas dos anos 1950, uma curiosa condensação, uma coesão entrópica que, ao contrário da força centrífuga de quase todo o expressionismo abstrato, faz o quadro cair para dentro. A paleta intensifica-se (passando, por exemplo, do rosa ao vermelho) e os gestos parecem demorar-se numa região interna ao quadro, diferenciando fortemente a parte do todo. Entre tantas soluções para o velho problema da relação fundo-figura, Guston vai propor o valor intensidade: a mancha nos anos 1950 e 1960, depois a personagem ou figura nos anos 1970, é mais densa, mais intensa do que o fundo, sendo feita, no entanto, da mesma matéria que ele. Não há distinção de raiz entre a personagem que se isola em seu monturo característico e o vazio que a cerca. Ela parece, apenas, menos diluída que aquele horizonte indefinido. A mesma matéria, a mesma pintura espessa circula aqui como lá: bastam algumas hachuras, à Robert Crumb, para que ganhe nome e familiaridade. Com isto, Guston pode oferecer, falando por toda a sua geração, uma resposta altiva à Pop: se de um lado o mundo está irremediavelmente cheio de sapatos e besouros, de relógios e lâmpadas e capuchinhos da k.k.k., são todos no entanto estágios diversos de condensação de uma mesma matéria pictórica, uma espécie de lava cultural que precede todos. Vem daí boa parte da altivez dos seres de Guston, às vezes de costas, às vezes um só olho enorme, de perfil. Se em sua renúncia e distanciamento (talvez por isso nunca apareçam de frente) reconhecem a pegajosidade da coisas e aceitam que lhes colem os sapatos às costas, é porque a eles pertence uma matéria mais disforme e mais antiga de que são feitas estas mesmas coisas, estes cadarços e solas.
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Em sua última exposição,1 as esculturas de Paulo Monteiro parecem ter alcançado plenamente aquilo que anunciavam desde as primeiras tentativas, de 1991: trata-se de um dos melhores trabalhos da arte brasileira dos últimos anos e, possivelmente, do resultado mais denso (a densidade é seu diferencial estilístico) da nossa geração. Tendo alcançado a maturidade que os desenhos em grafite sobre papel atingiram já em 1991, restituem para o nosso tempo aquela poética determinada e conclusiva, mas feita a partir da resistência das coisas, que Amilcar de Castro inaugurou entre nós na década de 1950. Talvez valha a pena refletir um pouco sobre estes dois conjuntos de trabalhos (as esculturas e os desenhos em grafite sobre papel) com que, um pouco a conta-gotas mas passo atrás de passo, com surpreendente linearidade metódica, Paulo Monteiro vem pontuando sua atuação.
Antes de mais nada, Guston: também aqui há distância e adesão, solidão e vontade de mundo. A mesma resignada altivez das figuras de Guston está nos cilindros de chumbo de Paulo Monteiro. O peso exces-sivo do grafite no papel e do chumbo sobre o chão indicam uma coesão e uma determinação exponenciadas, uma gravidade auto-centrada e auto-referente, um narcisismo dúbio, mais matéria (chumbo, grafite) do que forma, que remetem a Guston. O resultado é uma poética da expressão em que paradoxalmente a dúvida e a hesitação não têm lugar. Impenetráveis em sua densidade (como um apito de navio excessivamente grave), estas esculturas parecem sempre de costas para nós, como a figura de Guston mencionada acima, satisfeitas em sua monotonia e seu autismo. Ficam falando baixinho consigo mesmas, substituindo a própria tensão interna, vinda de fendas sutis e pequenas rebarbas, às relações espaciais exteriorizadas próprias de quase toda arte posterior ao Minimalismo.
Boa parte disto é alcançado, tanto nas esculturas quanto nos desenhos, a partir de um formato originário que se preserva no final. Poucos desenhistas terão compreendido tão bem as quatro linhas externas do papel quanto Paulo Monteiro. São elas que ordenam todas as demais
linhas, que passam a parecer, por contraposição, sempre tortas. Com isto, a liberdade do traço, o gozo infantil do rabisco (exponenciado pela consciência da própria autonomia) que se firmou com Miró ganha este contraponto restritivo do formato. A compressão das quatro bordas do papel está já suposta no próprio fluxo das linhas sobre ele, que parecem ao mesmo tempo líricas, no sentido de sonhadoras, e construtivas, no sentido de portadoras de ordem.
Esta mesma tensão entre a linha e o campo do papel talvez seja o ponto característico de um trabalho que serviu de referência para Paulo Monteiro, o de Mira Schendel. Também ali (em especial nas monotipias sobre papel japonês dos anos 1960) grande parte da originalidade vem desta presentificação do campo, que parece auto-suficiente, já pleno antes de qualquer atuação. As linhas do desenho são, assim, sugadas pela porosidade excessiva do papel, como se não quisessem sobrepor-se, mas entranhar-se nele sem perturbá-lo. O traço de Mira povoa o campo do desenho com pequenos seres assimétricos, passageiros, quase transparentes, como quem procura fluir com a vida sem determiná-la demasiadamente. O campo, aqui, serve para atenuar e restringir a ação do sujeito, que adquire reflexividade e definição ética a partir deste recolhimento.
Este mesmo jogo entre a expansão lírica das linhas e a restrição do campo do papel adquire, nos desenhos de Paulo Monteiro, um acento inverso, francamente escultórico. Estamos de volta, ao contrário de Mira, ao gesto contundente, instaurador: o campo é uma unidade tão poderosa que deve ser cortada a faca, em linhas que são talhos e que antecipam o chumbo das esculturas – se a mão que desenha, em Mira, pesava alguns poucos gramas, a de Paulo Monteiro pesa dezenas de quilos. São, além disso, linhas sempre excêntricas, margeando o papel, sem se cruzarem quase nunca entre si. Procuram relativizar este todo criando espaços e corpos a partir dele, às vezes para fora dele, mas nunca isolados em seu interior. É preciso atacar este interior pelas bordas, nunca pelo meio, surpreendê-lo em sua fronteira, em sua contigüidade com o mundo. As arestas das esculturas, como orelhas auscultando, estão já aqui. O desenho procura abrir o campo, cavá-lo, relativizar sua força gravitacional – as linhas parecem fortes e pesadas porque lutam contra ele. Na verdade, são duas épocas que se contrapõem aqui: no caso de Mira, o momento intensamente projetual que viveu (pós-guerra) despertava suas dúvidas e sua intuição de medida e leveza, de prudente delicadeza. No caso de Paulo Monteiro, o fracasso e a dissipação desse mesmo projeto, que fechou o campo do possível, deve ser aberto à faca novamente.
No caso das esculturas de chumbo, o grumo de onde partem desempenha função semelhante ao do campo do papel nos desenhos. O fato de partirem de um volume tensionado pela possibilidade de ser reconstituído no final, além de reminiscência feliz da tradição neoconcreta, responde por boa parte da singularidade destes trabalhos. Trata-se de um vago cilindro ou paralelepípedo arredondado que sofrerá algumas poucas ações, determinadas e suficientes. Até os trabalhos expostos na Bienal Internacional de São Paulo de 1994, estas ações eram resultado de alguns poucos gestos simples, feitos com o dedo (um talho) ou com a palma da mão (um afundamento até a base de uma borda da massa inicial) sobre o barro, fundido depois em chumbo. Com o aumento progressivo do tamanho do grumo inicial, estas ações passaram a deparar com uma escala de peso do barro que escapa ao controle destes gestos. Assim, nos últimos trabalhos, a aresta cortada de uma borda do grumo desliza sozinha, pela ação do próprio peso. Com isto, o movimento da peça, que dá alteridade ao grumo, é produzido pelo assentamento natural, gravitacional, das massas cortadas, e não mais (como nas esculturas da Bienal de 1994) pela ação de alguns gestos formalizadores. Os grumos, com isto, simplificam-se, perdendo expressividade, ainda mais remotos e recolhidos. As peças agora se movem para logo adiante repousar, saem de seu eixo para encontrá-lo em seguida, despertam apenas para adormecer novamente, aproximando-se do que sempre foram e serão: pedras movediças ou bichos paralisados.
Paulo Monteiro, sem título, 1991.
Com certeza, não é mais por uma questão de economia construtiva, de racionalização otimista dos esforços produtivos que estas peças mantêm um aspecto de contenção assim acentuado – são, a seu modo, contemporâneas, sabem distanciar-se da fluência formal modernista.
Mas não mantêm, por outro lado, qualquer desconfiança de raiz em relação às possibilidades da Forma. Creio que sua imobilidade aparente (mas como dançam, quando circulamos em torno delas!), sua densidade de buraco negro, que transforma em matéria as operações formais, sua camuflagem da leveza que prometem no peso que demonstram parecem antes uma astúcia discursiva: diante do volume intolerável do mundo barulhento é melhor mover-se pouco, evitando produzir ainda mais confusão. Melhor, de certo modo, tomá-lo como imutável, constante, pleno, sem nunca ceder a ele mais que uma borda, uma rebarba, uma fenda. Melhor manter-se coeso em seu próprio chumbo e peso.
Paulo Monteiro, sem título, 1991.
Talvez o sujeito astuto sugerido por estas peças, centrado em sua própria feição tosca e anônima (todos os grumos se parecem) mas ainda assim singular e insubstituível, seja mais poderoso do que parece e dentro de cada anão de jardim de Walt Disney more um profeta de Aleijadinho. Abandonado no fluxo da vida banal, sem o horizonte largo de um projeto, isola-se em sua própria densidade, voltando, desconfiado (como a figura de Guston), as costas para o mundo, embora irremediavelmente dentro dele.
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Difícil não perceber nos trabalhos destes dois artistas um elogio do homem anônimo, massificado em Guston e simplesmente comum, suburbano talvez, em Paulo Monteiro. Não há nada aqui dos grandes gestos, da potência pollockiana de transformar a vida desde o centro, nada da subjetividade-esponja, infinitamente reflexiva de um Rothko –
nada dos pampas cor de sangue de Iberê Camargo. O jogo já parece jogado e o mundo, em boa medida, tem contornos definitivos ou excessivamente longos. No entanto, longe da acidez quase cínica da Pop e do pessimismo de raiz, à Beckett ou Giacometti, em que o sujeito exilado encontra seu espelho magro e verdadeiro, estes são trabalhos mais modestos em seu propósito e de algum modo otimistas em sua sabedoria prosaica. Talvez não seja errado pensar aqui nos filmes de Frank Capra, no herói esquecido dos pequenos gestos, impossíveis de computar, como a personagem de James Stewart em A felicidade não se compra (It’s a wonderful life). Depois que o anjo sem asas cria um duplo nefasto de seu mundo para lhe mostrar o inferno em que a vida em geral (e não apenas a sua própria) teria se convertido sem as pequenas bondades de toda a sua existência, James Stewart reconhece que está de volta quando, ao subir a escada de casa, arranca sem querer um adorno do corrimão. Ele beija esta esfera solta, irritante, que todos os dias prometia consertar, convertida agora em sinal de seu retorno e de seu triunfo. É deste estranho júbilo que falam trabalhos como os de Guston e Paulo Monteiro. Numa época cujo sentido se enevoou (até mesmo em suas previsões mais catastróficas), parece que resta ao herói pollockiano voltar para casa e levar adiante suas manias, singularizando-se a partir delas. Afinal, quem sabe aquele modo de franzir a testa, aquela tristeza num fim de tarde, aquele ramerrão cinzento de pequenas decisões acabe fornecendo algum dia matéria suficiente para uma vida maravilhosa.
Publicado em O Estado de São Paulo, Caderno Cultura, 15 de outubro de 1994, com o título “Agouro e libertação convivem na obra de Goeldi”; e no catálogo da exposição “paraGoeldi”, Galeria as studio, outubro de 1996.
1. Galeria Marília Razuk, São Paulo, setembro de 1998.