Voz da água
(Emitida de dentro dos seis barris de aço cheios de água e a partir de um dos burricos. Uma voz grave, como a do Jamelão ou a da Dona Inah, cantando, com longos intervalos, os primeiros quatro versos da canção “Se todos fossem iguais a você”, de Jobim e Vinicius. Às vezes a estrofe inteira, às vezes um único verso, ou fragmento de verso, como alguém distraído, cantando sem querer, errando a letra às vezes):
Vai, tua vida, teu caminho é de paz e amor
Vai, tua vida é uma linda canção de amor
Abre teus braços e canta a última esperança
Esperança divina de amar em paz.
Voz do sal
(Emitida de dentro do monte de sal e a partir de um dos burricos. Voz masculina, que faz comentários à letra):
(Gritado bem alto, rouco) Vai, vai!
(Longa pausa)
(Cantando) “Vai, teu caminho”.
Quem vai não é você, é o teu caminho. Pra onde você vai, se quem vai é ele?
Se quem vai, vai sozinho?
(Pausa) Sozinho.
(Longa pausa)
Tua vida vai lá, tá indo, agora, vê lá.
Vai sem você, tá indo sozinha, vai de qualquer jeito mesmo, quer você queira, quer não. (Grita) Vai!, vai!, vai!, (pausa) sem ninguém dentro, ninguém lá dentro. (Grita) Vai! (Pausa. Grita) Não vou! (Pausa) Vai leve, vazia, sem peso, como uma embalagem sem conteúdo. E vai bem, obrigado, fluindo, vai indo. Agora. Vai indo agora. Bem na tua frente. Alguns passos adiante de você, tua vida vai te puxando. Quer você queira, quer não. A tua vida na avenida. Na tua cara. Gloriosa, seminua. Na passarela, na tv. Vai indo. Tua vida (pausa) minuci-o-sa-men-te vitoriosa. Premiada, inaugurada em cerimônia pública. Ouve os aplausos? Ainda assim é a tua vida. (Pausa) É ela. (Pausa) É tua.
Toda tua, mas não é você. (Pausa) Lá vai ela. (Grita) Vai! Vai! Olha lá. (Pausa)
É a tua vida, mas não é você.
(Longa pausa)
(Com alguma ironia na voz, cantando)
“Abre os teus braços”. Seria melhor abrir as mãos. As mãos por exemplo.
Soltar o que tem fechado na mão. Abrir os braços para quê? Abraçar o quê? A pedra iluminada. A paisagem. Abraçar cada rajada. (Grita) Vai! (Pausa. Grita.) Não vou! A cidade vai sem você. Cada rua, cada bairro vai sem você. (Pausa. Canta) “Abre os teus braços” (Pausa. Ríspido): Osteus-bra-ços! Fortes, fracos, o quê, peludos? Aqui! Carrega. Carrega agora. Pra isso os teus braços servem. Teus braços carregam para longe o monte inteiro de sal. Para longe, grão a grão. Aos poucos. Para longe dos meus olhos. Ou de uma só vez. Como se fosse a última. Você. Você aí. (Pausa. Grita) Vai! (Pausa) Vai! (Pausa) Não vou! (Pausa) Abre teus braços, pra isso servem. Você, você aí. Sim, eu sei: o sal já tá na minha cara. Eu sei que choro, é claro. A cidade inteira vai andando sozinha, (Voz normal) vai, vai, vai. Abre teus braços. Abraça (pausa) cada rajada. Antes que ela passe, antes que o eco dela passe, antes que acabe a rajada, a sequência de rajadas, abraça. Antes que vire o quê? - confete, serpentina, e depois vire o quê?- notícia, telejornal, e depois ainda o quê?, papel, antes que vire a folha de papel jornal impressa cobrindo o quê?, cobrindo o quê? – respondendo com frieza) cobrindo o corpo que a própria rajada deitou no asfalto. E-xa-ta-men-te. Sim, assim, e assim por diante. É assim. Continua, com você ou sem você, você querendo ou não. Aquilo quer seguir. Seguir sempre. Aquilo ali quer seguir. Olha lá. Tua vida (Pausa, voz indecisa), aquilo. Aquilo ali. Melhor assim. (Pausa) Abraça tudo o que você puder.
(Longa pausa)
(Cantando) “E canta”. Canta como? Esse aí já tá cantando. (Cantarola) “A última esperança…” Sempre tive. Nesse ponto ninguém pode dizer nada, sempre tive muita. O sal que cai pela minha cara não é – não, desespero não é nunca. O sal desidrata, conserva. Mumifica cada rajada. Eu mesmo destilo, e guardo. Vou acumulando aos pouquinhos. Canta baixo ou canta alto? Canta doce ou canta aos berros? Canta pró ou canta contra? Quem canta? Para quem canta? (Pausa. Grita) Vai! (Pausa) O sal conserva a voz no ar. (Pausa) Imóvel. Paradinha. A voz esperando. O sal conserva a luz parada. Quieta, ali, pode ver. A luz antiga e a voz, as duas ali paradas. Esperando. O sal mantém a platéia no lugar, no lugar que é dela, do lado de fora, muda, parada também. Totalmente inerte. (Tom de assombro, como quem completa um raciocínio) Mumificada. Como uma estátua de… advinha?Advinha do quê? Já sei! Uma estátua de sal, imbecil. (Grita) De sal!
Voz do feno
(Emitida a partir de dentro do monte de feno e de um dos burricos. Conjunto pequeno — no mínimo três, no máximo cinco — de vozes femininas, recitando o texto em uníssono, como uma cantilena)
Pasta, (Pausa) anda. O feno voa quando há vento. Espalha como cinzas vivas. Cinzas, mas vivas. Entra no aparelho digestivo (pausa) e vira uma (Ênfase) merda verde. Hóstia. Cresce dentro. Animais pacíficos são percorridos pelo (Pausa. Falam alto) feno! Girassol! Rosas! Gerânios! Grita, verde. Grita, tudo. Tudo verde (Ênfase) Paz! (Ênfase) Na terra! (Ênfase)! Ninguém! Deixa a pausa, a pausa entre eles, eles: os comedores de feno, (Pausa) deixa a pausa crescer até perder o ritmo. Deixa a pausa tomar conta desses seres (Pausa) mirrados, centrados, até o ritmo deles, que mata tudo, tudo, morrer, por sua vez morrer. Até o ritmo deles, (Pausa) que mata tudo, tudo (Pronunciando devagar) – as ár-vo-res, os bi-chos, as ro-sas, os pe-que-nos pra-ze-res, as ale-gri-as co-ti-di-a-nas (Pausa), morrer, por sua vez morrer. Não saberia pedir mais. Não poderia querer mais. Não poderia sonhar com nada mais - pequeno monte de feno deitado, a base maior do que a ponta, soprado às favas, soprado às vezes, soprado ao léu. Montanha que caminha como alguém caminha, um andarilho sem rumo, um navio sem porto, um cachorro de subúrbio, perdido. Paisagem amanhecendo a cada dia dentro de outra paisagem. Monte dissipado. (Pausa, gritam) Vai! Espalhado. (Pausa, gritam) Vai! Misturado aos elementos. (Pausa, gritam) Vai! Não poderia saber mais. Não poderia querer mais. (Pausa, gritam) Vai! Chega. (Pausa, gritam) Vai! (Pausa, gritam)
Vai! (Pausa, gritam) Vai! Chega. (Pausa, gritam) Vai! (Pausa, gritam) Vai!